Djonga sacia o apetite de afirmação na jornada reflexiva de grande álbum que traz Milton Nascimento e Samuel Rosa
14/03/2025
(Foto: Reprodução) Em ‘Quanto mais eu como, mais fome eu sinto’, o rapper busca autoconhecimento, ‘sampleia’ Los Hermanos e recupera a força atenuada no disco anterior ao ponderar sobre os efeitos da fama. Capa do álbum ‘Quanto mais eu como, mais fome eu sinto’, de Djonga
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♫ OPINIÃO SOBRE DISCO
Título: Quanto mais eu como, mais fome eu sinto
Artista: Djonga
Cotação: ★ ★ ★ ★ ★
♬ Fez bem a Djonga ter atravessado 2024 sem lançar um álbum, fato então inédito na discografia iniciada pelo rapper mineiro em 2017 com Heresia. Com o oitavo álbum, Quanto mais eu como, mais fome eu sinto, o artista recupera a força que pareceu levemente atenuada no disco anterior, Inocente “demotape” (2023), pautado por certa intencional suavidade.
Lançado às 18h13 de ontem, 13 de março, o álbum Quanto mais eu como, mais fome eu sinto flagra Djonga saciado, mas inquieto, ao expressar angústias, conquistas, dúvidas e frustrações na jornada reflexiva de disco em que o rapper busca o alimento espiritual. Se o corpo já está alimentado, a alma consciente permanece faminta de autoconhecimento e justiça social.
Com beats e arranjos criados por Coyote Beatz e Rapaz do Dread em sintonia com as inquietações do rapper, o álbum reflete a visão atual de Djonga após a superação da fome (que já foi real, e não somente metafórica) e da conquista da fama que gera dinheiro e poder, mas também vampiros que sugam o sucesso alheio.
“Não confio nem no espelho, é que ele é ao contrário / A imagem que me dá não é o que eu represento / Que eu não vou trocar o moleque que só pensa em dançar / Por um adulto covarde que só pensa em sustento”, dispara Djonga nos versos de Fome.
Djonga canta versos afiados sobre os beats de Coiote Beatz e Rapaz do Dread, produtores musicais do álbum ‘Quanto mais eu como, mais fome eu sinto’,
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Na narrativa composta pelas letras das 12 músicas (bem) mixadas e masterizadas pelo engenheiro de som Arthur Luna, Djonga se permite acessar dores e desconfortos sem deixar de ostentar resiliências e vitórias.
“Eu penso em Deus quando vejo um mano da cor formado / Eu penso em Deus quando vejo um mano da cor roubando / Eu vejo Deus até naquele que tá conformado / Não penso em Deus quando vejo o dedo branco apontando”, ressalta o rapper nos versos de PPRT!, apontando o dedo para o racismo embutido na estrutura social do Brasil.
Em Real demais, o canto é nervoso, talvez porque Djonga toque ali nas próprias feridas. “Ainda só penso em tudo que passei / Tipo a certeza que o demônio mora ao lado / Da polícia a parte ruim é tudo que eu sei”, reflete Djonga sobre o beat de Rapaz do Dread, também responsável pela batida de Melhor que ontem, faixa aberta com sample de Último romance (Rodrigo Amarante, 2003), sucesso da banda carioca Los Hermanos.
Com força mais espiritual do que física, a voz de Milton Nascimento enobrece o refrão melódico do rap Demoro a dormir. “Eu ando pensando sobre nós / E toda noite demoro a dormir / Vivo no presente, Deus se encaminha do após / E sei que o que foi, morreu atrás ficou ali”, canta Milton, enfatizando o tom reflexivo e espiritual do álbum editado por Djonga pelo selo A Quadrilha e distribuído no mercado digital via ONErpm.
“Tentaram me fazer surtar que nem Chorão, mas trago guias no pescoço que valem mais que um cordão / Te põe no topo pelo prazer de tirar de lá, perguntam se tu quer o doce só pra dizer não”, acusa o rapper nos versos de João e Maria.
O incessante questionamento de Djonga no álbum se estende à esfera privada dos relacionamentos afetivos. “O que que cê quer aqui? Essas bolsas? Esses carros? / Ou o que eu sou quando me tiram tudo isso, um cara comum e sensível / Diz, o que que cê quer aqui? / Eu sou o cara que seus pais te disseram pra tomar cuidado”, questiona o rapper em QQ cê quer aqui? em diálogo com a parceira de cama e mesa. Em Te espero lá, o convite à menina é feito na voz de Samuel Rosa em refrão que acena para a leveza pop em conexão sutil com o disco anterior de Djonga.
Sem perder o pique em músicas como Ainda (gravada com Dora Morelenbaum), Livre (“Ouça o grito de um negro livre”) e Ponto de vista (faixa que traz o emergente rapper mineiro RT Mallone), o álbum Quanto mais eu como, mais fome eu sinto é o retrato (aparentemente sem retoques) de Djonga após o rapper ter entrado para a linha de frente do hip hop brasileiro.
“E eu me mostro por inteiro, é mask off, vocês são fãs de coach, bando de fantoche / Uns nascem com dom pra dono, outros pra mascote, quando passar, só sobram os originais, se vão os xerox”, projeta o rapper com virulência nos versos de Selvagem.
Enfim, ao contar histórias da própria área sob a perspectiva e a ótica de quem transcendeu o gueto através das rimas sempre afiadas, Djonga se eleva ao se olhar no espelho no álbum Quanto mais eu como, mais fome eu sinto com apetite voraz pelo autoconhecimento e pela gana de escancarar as regras nem sempre limpas do jogo social.
Djonga canta com Dora Morelenbaum e RT Mallone no oitavo álbum, ‘Quanto mais eu como, mais fome eu sinto’, no mundo desde ontem, 13 de março
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